Os modelos de operação CDM em ambiente aeroportuário, foram desenvolvidos como uma forma de assegurar maior previsibilidade e eficiência à operação aeroportuária, então afetada pelo antibiótico das medidas ATFM. Assim como medicamentos que protegem o fígado, dos efeitos colaterais dos antibióticos.
Afinal, o transporte aéreo retomará seu crescimento pré-covid ?
Quando ? Onde ? Em que ritmo ?
As primeiras respostas – em alguns casos, encorajadoras, em outros, nem tanto – já começam a ser publicadas.
O fato é que, pelo menos em um aspecto, a redução drástica do tráfego aéreo, a partir do início de 2020, proporcionou a todas as entidades, formal ou informalmente envolvidas na gestão do transporte aéreo da América Latina, a oportunidade de aprofundar seus conhecimentos sobre o conceito CDM (Collaborative Decision Making) e sua introdução no transporte aéreo, como evolução do ATFM (Air Traffic Flow Management).
Com efeito, em diferentes regiões – notadamente Estados Unidos (FAA) e Europa (Eurocontrol), à partir do início dos anos 2000, os serviços ATFM, identificaram a necessidade de envolver os Aeroportos, nos esforços para o aumento de eficiência “end-to-end”/ “gate-to-gate” do transporte aéreo. Estavam lançadas as bases do que viriam a ser o Surface CDM (FAA) e o Airport CDM (Eurocontrol).
Alguns aspectos relevantes e comuns a ambos processos, devem ser ressaltados:
- Ambos foram elaborados com base em circunstâncias operacionais, culturais e comportamentais regionais, de forma a melhor responder às necessidades e oportunidades da região
- Ambos introduziram a busca do equilíbrio entre a demanda de decolagem (dos aeroportos) e a capacidade combinada de infraestrutura aeroportuária e disponibilidade do espaço aéreo.
É de essencial importância de compreender-se bem ambos aspectos, dado que, dentro de um conceito CDM de operação aeroportuária, o evento door close, já não será resultado direto de uma variável (pontualidade da empresa aérea), mas sim de um conjunto de fatores – muitos dos quais imprevisíveis, que garantirão à operação, máxima eficiência “gate-to-gate”.
Seria fantástico se a economia de combustível, os benefícios ambientais e o aumento de previsibilidade prometidos pelo conceito CDM de operações, fosse um grande almoço grátis, mas todos sabemos que o mundo não funciona desta forma.
A grande mudança de paradigma proposta pela operação CDM, afeta alguns conceitos históricos do transporte aéreo, que necessitam ser revisitados, compreendidos e aceitos por todos os envolvidos – ênfase especial a empresas aéreas e passageiros, a saber:
- Previsibilidade
Afinal, seja em voos turísticos ou em voos de negócio, que previsibilidade é relevante para o passageiro ? A que horas fecha a porta do avião na origem ou a que horas ele desembarca e dá continuidade à sua vida no destino ? Que horário é efetivamente relevante para o passageiro ?
- Pontualidade
Dado que, em uma operação CDM, o evento door close já não é resultado direto da eficiência da empresa aérea, mas de um conjunto de fatores, que buscam garantir a eficiência “gate to gate” da operação, fará sentido manter-se forma atual de avaliação de “ontime performance” da companhia, tanto do ponto de vista formal (valores publicados), quanto da percepção informal dos passageiros?
- ASAP (As soon as Possible)
Dentro do modo tradicional de operação aeroportuária, a cultura ASAP atendia perfeitamente à expectativa de todos, já que havia uma hora prevista para embarque, taxi e decolagem e quanto menos atraso, melhor ! Todos os esforços convergiam para que o piloto pudesse ASAP, solicitar acionamento de motores, pushback, taxi e decolagem.
Pois bem, dentro do conceito CDM, não há mais espaço para o ASAP, em nenhum ponto do ciclo “turn-around”. Esta é a grande novidade introduzida pelos TARGETS e (não por acaso) o grande desafio imposto a companhias aéreas e ground handlers pelo conceito CDM. Onde encontrar os meios, recursos, ferramentas, para elevar os níveis de previsibilidade dos antigos “ESTIMATES” para os “TARGETS” exigidos para uma operação CDM ?
Como se pode ver, estamos falando de conceitos, princípios, normas e percepções construídos ao longo de décadas de operação aeroportuária e cuja alteração deve ser fruto de profundos processos de estudo, avaliação, análise e mudança de comportamento que irá alcançar a TODOS os profissionais que trabalham em ambiente aeroportuário.
Dentro de uma perspectiva histórica, pode dizer-se que, bem antes do desenvolvimento dos atuais modelos de operação CDM em ambiente aeroportuário, uma INFECÇÃO ORIGINAL já comprometia a eficiência dos voos em rota – o caráter finito do espaço aéreo. Uma série de medidas ATFM foram concebidas como ANTIBIÓTICO para combate a esta infeção (Miles-in-trail, Minutes-in-Trail, Calculated Takeoff Time, etc.).
Era inevitável que este poderoso antibiótico – eficiente no combate ao desequilíbrio entre capacidade e demanda do espaço aéreo, resultasse em impacto na operação aeroportuária, já que ambas são parte integrante de um mesmo evento “gate-to-gate”.
Os modelos de operação CDM em ambiente aeroportuário, foram desenvolvidos então como uma forma de assegurar maior previsibilidade e eficiência à operação aeroportuária, então afetada pelo antibiótico das medidas ATFM. Assim como medicamentos que protegem o fígado, dos efeitos colaterais dos antibióticos.
É essencial compreender-se tal contexto histórico, para não se correr o risco de ingerir um medicamento para o fígado, na expectativa de combater a infeção original, para a qual não foi ministrado o antibiótico. A isto equivalem tentativas de solucionar-se problemas de congestionamento do espaço aéreo, através de implementações isoladas de CDM em ambiente aeroportuário, dissociados de sua função de elemento integrante do serviço ATFM.
Uma última observação diz respeito à adaptabilidade dos fundamentos e elementos conceituais de cada Modelo CDM (notadamente o Surface CDM e o Airport CDM), ao ambiente operacional, cultural e comportamental de cada região.
Digamos que, tão errado quanto buscar reinventar a roda é assumir que uma roda projetada em ambientes operacionais, conjunturais e culturais específicos possa ser simplesmente replicada em qualquer cenário – sabemos quanto o mundo já assistiu de grandes fracassos, quando tais princípios são ignorados.
Para ilustrar as diferenças entre os variados modelos de operação CDM em ambiente aeroportuário e a importância de compreender os cenários onde foram desenvolvidos, passemos a uma análise bastante simples:
Ambos modelos (Surface CDM e Airport CDM), coincidem ao impor limitações à flexibilidade INDIVIDUAL da operação das companhias aéreas, como forma de promover o aumento de disponibilidade GLOBAL de recursos finitos (infraestrutura do aeroporto/capacidade do espaço aéreo). Este é um princípio aplicável a qualquer ramo da atuação humana.
Cada modelo oferece, uma solução, para apoiar as empresas aéreas (e os ground handlers) neste desafio.
- O FAA, no Surface CDM https://cdm.fly.faa.gov/?page_id=221 promove como elemento fundamental o compartilhamento dos dados de vigilância de superfície a todos os stakeholders, para aumento de consciência situacional coletiva. Uma abordagem 100% operacional.
- O Eurocontrol, no Airport CDM ( https://www.eurocontrol.int/concept/airport-collaborative-decision-making ) promove um processo de alimentação conjunta (por todos os stakeholders), de uma base de dados única (ACISP), de informação atualizada, em tempo real, sobre 16 eventos (Milestones), que compreendem o “ciclo” da operação de uma aeronave no aeroporto. Uma abordagem sistêmica (Tecnologia de Informação).
E assim, em muitas outras áreas, os dois modelos propõem abordagens e elementos conceituais diferentes, convergindo para o mesmo objetivo – integrar a operação aeroportuária aos esforços de otimização do transporte aéreo, originariamente iniciada com o serviço ATFM.
Evidentemente, não há um modelo melhor ou pior. Cada um refletiu a melhor resposta a décadas de operação de transporte aéreo, dentro de ambientes operacionais e culturais específicos.
Hoje, a América Latina, bem como outras regiões, têm a oportunidade de aprender, analisar, contemplar suas efetivas necessidades e possibilidades e beneficiar-se de experiências vividas em outras regiões, para desenhar soluções que façam sentido em sua operação.
A pandemia da covid, com todos os seus entraves, proporcionou um tempo adicional, para que Estados e Entidades, construam suas soluções, à medida que as circunstâncias assim o indiquem, dentro de uma abordagem realista de que grandes desafios requerem grandes esforços !