A relevância do papel da ANAC na uniformização de regras regulatórias relacionadas à concorrência nos serviços auxiliares ao transporte
A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) instaurou recentemente a Consulta Pública nº 09/22, com o objetivo de submeter à participação social a proposta de alteração normativa das Resoluções ANAC nºs 302/14, que estabelece critérios e procedimentos para a alocação e remuneração de áreas aeroportuárias, e 116/09, que dispõe sobre os serviços auxiliares ao transporte aéreo.
Para fins deste texto, o foco residirá na sugerida alteração, no âmbito da Resolução ANAC nº 302/14, de se atribuir exclusivamente aos entes delegados (isto é, Municípios, Estados ou Distrito Federal) a competência para analisar e fiscalizar os critérios para a alocação e a remuneração de áreas aeroportuárias de aeródromos públicos sob a administração desses entes públicos.
Primeiramente, é importante lembrar que, quando a Agência Reguladora submete determinada matéria à participação social, não significa que há efetivamente um convencimento do regulador de que aquele é o melhor caminho a ser perseguido. Não raro, a iniciativa também serve ao propósito para colher distintas visões do setor regulado e da sociedade civil como um todo acerca de um tema específico, as quais poderão municiar a Agência de subsídios técnico-jurídicos ou até mesmo de alternativas para o problema inicialmente identificado. É preciso, de igual forma, elogiar esse tipo de iniciativa da ANAC, na medida em que favorece o debate aberto e democrático e reduz a assimetria de informação geralmente presente na relação regulador-regulado.
Feita essa necessária ressalva, trago a seguinte provocação: por que esse tema é relevante?
A alocação e a remuneração de áreas aeroportuárias estão diretamente relacionadas com a promoção de concorrência em alguns serviços auxiliares ao transporte aéreo, a exemplo do abastecimento de aeronaves. De acordo com a regra vigente, estabelecida na própria Resolução ANAC nº 302/14, a “remuneração por preços específicos pela utilização das áreas destinadas às atividades operacionais, elencadas no art. 2º, incisos II a V[1], será livremente pactuada entre o operador do aeródromo e as partes contratantes, sendo vedadas quaisquer práticas discriminatórias e abusivas, nos termos da legislação vigente e da regulamentação da ANAC.”
Bem se vê, a regulação atual impõe e incentiva uma desejável concorrência nos serviços auxiliares ao transporte, coibindo-se qualquer prática discriminatória ou abusiva. Isso se torna particularmente relevante em se tratando de abastecimento de aeronaves, na medida em que o preço do combustível de aviação tem conquistado um espaço cada mais expressivo no custo das operações de transporte aéreo no brasil.
E por que manter a ANAC como entidade regulatória com a palavra final?
A primeira razão, na visão deste autor, tem matriz legal. Os contornos da atuação regulatória da Agência Reguladora estão estabelecidos, principalmente, no rol do art. 8º, da Lei Federal nº 11.182/2005 (Lei da ANAC), que estabelece, em seu inciso X[2], a competência da ANAC para regular e fiscalizar os serviços auxiliares.
Além disso, convém lembrar que o Congresso Nacional aprovou, em 2019, a Lei Federal nº 13.848/19 (Lei das Agências Reguladoras – LAR), com o objetivo de uniformizar regras e procedimentos envolvendo essas entidades que exercem poder normativo de segundo grau e que ocupam espaço de relevo no cenário jurídico-regulatório brasileiro. Nesse contexto, a LAR estabeleceu, em seu art. 34, §º 7º, que, no caso de delegação de competência, a Agência delegante permanecerá como instância superior e recursal das decisões tomadas pelos entes delegados. Trata-se de orientação legislativa indesviável e que busca, em última análise, a manutenção do oversight da deslegalização originalmente atribuída pelo Congresso Nacional àquela entidade regulatória específica.
A segunda razão, por outro lado, está calcada nas boas práticas regulatórias. Isto porque, a prevalecer a transferência de competência absoluta para os entes delegatários, a Agência estaria estimulando um quadro de hiperinflação regulatória, na medida em que cada ente passará a ter o múnus de disciplinar – livremente – o acesso aos Parques de Abastecimento de Aeronaves de seus respectivos aeroportos delegados. Quer-nos parecer que essa medida estaria desalinhada com as balizas dispostas no Decreto Federal nº 9.203/2017, a exemplo da melhoria regulatória (art. 3º, IV), da simplificação administrativa (art. 4º, II) e a coerência do ordenamento jurídico (art. 4º, IX).
Neste caso, a coerência regulatória e a segurança jurídica advogam contrariamente à proposta inicial da ANAC. A uma, porque inexiste coerência entre a opção pela delegação de competência a uma pluralidade de entes para dispor sobre um mesmo tema sem qualquer poder revisional (oversight). A duas, esse cenário levará inexoravelmente a um elevado custo de transação, uma vez que as empresas não teriam previsibilidade na regra regulatória aplicável aos diversos aeródromos públicos, reduzindo-se o interesse e, consequentemente, a concorrência. A três, carece coerência na iniciativa de se pretender promover a concorrência no mercado de distribuição de combustíveis de aviação e, ao mesmo tempo, se abdicar de competência regulatória essencial para assegurar a promoção dessa política pública no âmbito de aeroportos delegados. A quatro, não se vislumbra coerência em se perseguir o estímulo à competição nos aeroportos concedidos pela União Federal e não impor as mesmas regras aos aeroportos delegados, como se a decisão de descentralização da gestão dessas estruturas pudesse alterar a importância e a forma de promoção dessa política pública, vital para a redução do custo do combustível de aviação. A cinco, não se pode esquecer que os aeroportos delegados continuam sendo de titularidade da União Federal, mas são administrados por um prazo determinado pelos entes públicos subnacionais; isso significa dizer que as decisões relevantes envolvendo esses aeródromos, a exemplo daquelas que envolvam políticas públicas de concorrência nos serviços auxiliares ao transporte, em algum momento no futuro, impactarão os interesses da própria União Federal.
Por fim, é preciso reconhecer que a mera existência desse debate é reflexo positivo da iniciativa da ANAC em promover a Consulta Pública nº 09/2022 e estimular a apresentação de visões distintas sobre essa matéria, o que acaba também servindo ao propósito de legitimar a decisão regulatória final, que pode levar inclusive à manutenção do status quo normativo da Resolução ANAC nº 302/2014. É inegável a importância do papel revisional (oversight) da Agência Reguladora, como instância superior e recursal final, acerca das políticas públicas de não-discriminação e não-abusividade na alocação e remuneração de áreas aeroportuárias para a prestação dos serviços auxiliares ao transporte, tal como definido pelo legislador ordinário na Lei das Agências Reguladoras.
[1] Art. 2º Para os efeitos desta Resolução, são consideradas como áreas aeroportuárias aquelas situadas no aeroporto e destinadas:
(…)
II – ao atendimento e movimentação de passageiros, bagagens e cargas; III – aos concessionários, permissionários ou autorizatários dos serviços aéreos; IV – aos serviços auxiliares ao transporte aéreo e de abastecimento de aeronaves; V – ao abrigo e manutenção de aeronaves;
[2] Art. 8º Cabe à ANAC adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento e fomento da aviação civil, da infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária do País, atuando com independência, legalidade, impessoalidade e publicidade, competindo-lhe: X – regular e fiscalizar os serviços aéreos, os produtos e processos aeronáuticos, a formação e o treinamento de pessoal especializado, os serviços auxiliares, a segurança da aviação civil, a facilitação do transporte aéreo, a habilitação de tripulantes, as emissões de poluentes e o ruído aeronáutico, os sistemas de reservas, a movimentação de passageiros e carga e as demais atividades de aviação civil;
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